quarta-feira, 9 de maio de 2012

Ítalo

Por enquanto são impressões desajeitadas que ficam na retina e na memória das panturrilhas.

São alguns moleques que já conheci algum dia na vida e uma mulher que conheço ainda hoje. Uso a palavra “moleque” porque a palavra “menino” me é, por algum motivo, muito feminina, lúdica e delicada. Então, vou sempre me referir a esses três personagens como moleques, palavra que corrobora a questão do gênero através da ausência de uma contraparte feminina válida, muito por conta de sua desqualificação formal e pelo universo infantil-marginal que dela emana. É uma tentativa de impor a masculinidade desde cedo, através de uma nominação forçosamente vadia e viril. Pois bem, esses três moleques não sabem o que fazem, e talvez se perder em todo esse não-saber-o-que-fazer seja, inconscientemente, sua principal escolha.

Meu pai me ensinou. Fico pensando no que o meu pai ensinou ao Ítalo e ao Brenno e ao Alex – decerto que muito, muito, muito que desviou-se daquilo que de fato deveria fincar na mente. Às mulheres se ensina a ser: forte, polivalente, capaz, ser. Aos homens se ensina a não ser: não ser fraco, não ser pequeno, não ser otário, não ser impotente; talvez venha daí a fraqueza inglória da dominação. E é com isso que nos vejo lidando todos os dias em sala de ensaio: com as falsas dominações, de nós três sobre a Dodô, do texto sobre nós cinco, dos nossos quatro corpos sobre nossas oito pernas.

Ítalo é um franco-atirador de si mesmo, uma falha de caráter reconfigurada para alguma falha dramatúrgica, o tipo de sujeito que está separado por um fio dos covardes que espancam gays na rua. Ou talvez seja mais um pseudo-intelectual pseudorreacionário pseudocavalheiro, desses que andam por aí nos coletivos com um livro de sebo debaixo do braço, adoram Caetano, mas não dão bom dia ao porteiro. O sujeito que, em vez de pensar, apenas pensa que pensa.

Ele é uma força dominadora bastante silenciosa, e por isso mesmo tão eficaz em sua perversão ao transferir sua dor em um único gesto determinante para o futuro das vidas daquelas pessoas. Gerador de mortes-suplício. Por isso e outras razões menos aparentes, é o algoz de toda a ação. É sozinho, mas não é só. Em sua conversa final com Ana, demonstra algum tipo de repressão afetiva e sexual que me faz querer não buscar mais justificativas para seus fascismos de moleque. A frieza com que maneja a arma e a economia com que transfere palavras à boca são indícios de sua psicopatia. Tem desejo de sangue e tara na morte, algo que, para mim, só funcionará através de alguma forma distorcida de humor – algum lugar mais seguro dentro dessa nuvem cinza e espessa. É uma vibração esquisita no fluxo presencial que esses outros corpos constroem. Talvez essa seja a casa de campo de sua família, e ele sempre desejou matar ou morrer ali.

Não existe camaradagem na relação entre eles. Alex e Ítalo são esforço deprimente de uma tentativa de manutenção de afetos que precisa se refletir em algum arroubo físico; Brenno e Ítalo são mero acidente ou disfarce – acho, inclusive, que nunca se olham durante a peça, tamanha a arrogância de Ítalo perante o comparsa. São amizades que se constroem pela força do hábito, pela inércia das relações, e acabam, por euforia ou por ausência de alegrias outras, adquirindo intensidade e frequência maior do que pedem.

Ítalo e Ana é perturbação, ignorância, incompreensão. Claramente o Ítalo não foi motivado a fazer tudo isso por conta de um zero. Me parece um teste do texto à nossa própria inteligência construir as reais intenções para eles estarem ali. Não é por conta de um zero, não é por conta de uma pergunta, não é por conta do soro da verdade. Os homens que não amavam as mulheres. Sempre penso no título desse filme que eu nunca assisti. Essa peça é uma caça às bruxas, Ítalo é um dos inquisidores e Ana é a acusada. A primeira coisa que o ignorante ignora é que a história não precisa ser repetida.  

Essa coisa que estamos tentando encenar não fui eu que pedi. Essa tentativa-e-erro diária me cansa e me alimenta, e meu corpo consente, contente, a trabalhar tanta tristeza. Ser homem é não ser dócil. Essa peça que estamos montando me lembra de algo que não sei. Por ventura extrapolasse uma resposta de mim neste instante, arrisco dizer que seria a lembrança de algo que não somos. É uma peça política, e eu não me sinto culpado.

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