São alguns
moleques que já conheci algum dia na vida e uma mulher que conheço ainda hoje. Uso
a palavra “moleque” porque a palavra “menino” me é, por algum motivo, muito
feminina, lúdica e delicada. Então, vou sempre me referir a esses três
personagens como moleques, palavra que corrobora a questão do gênero através da
ausência de uma contraparte feminina válida, muito por conta de sua
desqualificação formal e pelo universo infantil-marginal que dela emana. É uma
tentativa de impor a masculinidade desde cedo, através de uma nominação
forçosamente vadia e viril. Pois bem, esses três moleques não sabem o que fazem,
e talvez se perder em todo esse não-saber-o-que-fazer seja, inconscientemente, sua
principal escolha.
Meu pai me
ensinou. Fico pensando no que o meu pai ensinou ao Ítalo e ao Brenno e ao Alex
– decerto que muito, muito, muito que desviou-se daquilo que de fato deveria fincar
na mente. Às mulheres se ensina a ser: forte, polivalente, capaz, ser. Aos
homens se ensina a não ser: não ser fraco, não ser pequeno, não ser otário, não
ser impotente; talvez venha daí a fraqueza inglória da dominação. E é com isso
que nos vejo lidando todos os dias em sala de ensaio: com as falsas dominações,
de nós três sobre a Dodô, do texto sobre nós cinco, dos nossos quatro corpos
sobre nossas oito pernas.
Ítalo é um
franco-atirador de si mesmo, uma falha de caráter reconfigurada para alguma
falha dramatúrgica, o tipo de sujeito que está separado por um fio dos covardes
que espancam gays na rua. Ou talvez seja mais um pseudo-intelectual
pseudorreacionário pseudocavalheiro, desses que andam por aí nos coletivos com
um livro de sebo debaixo do braço, adoram Caetano, mas não dão bom dia ao
porteiro. O sujeito que, em vez de pensar, apenas pensa que pensa.
Ele é uma força
dominadora bastante silenciosa, e por isso mesmo tão eficaz em sua perversão ao
transferir sua dor em um único gesto determinante para o futuro das vidas
daquelas pessoas. Gerador de mortes-suplício. Por isso e outras razões menos
aparentes, é o algoz de toda a ação. É sozinho, mas não é só. Em sua
conversa final com Ana, demonstra algum tipo de repressão afetiva e sexual que
me faz querer não buscar mais justificativas para seus fascismos de moleque. A
frieza com que maneja a arma e a economia com que transfere palavras à boca são
indícios de sua psicopatia. Tem desejo de sangue e tara na morte, algo que,
para mim, só funcionará através de alguma forma distorcida de humor – algum
lugar mais seguro dentro dessa nuvem cinza e espessa. É uma vibração esquisita
no fluxo presencial que esses outros corpos constroem. Talvez essa seja a casa
de campo de sua família, e ele sempre desejou matar ou morrer ali.
Não existe
camaradagem na relação entre eles. Alex e Ítalo são esforço deprimente de uma
tentativa de manutenção de afetos que precisa se refletir em algum arroubo
físico; Brenno e Ítalo são mero acidente ou disfarce – acho, inclusive, que
nunca se olham durante a peça, tamanha a arrogância de Ítalo perante o comparsa.
São amizades que se constroem pela força do hábito, pela inércia das relações,
e acabam, por euforia ou por ausência de alegrias outras, adquirindo
intensidade e frequência maior do que pedem.
Ítalo e Ana é
perturbação, ignorância, incompreensão. Claramente o Ítalo não foi motivado a
fazer tudo isso por conta de um zero. Me parece um teste do texto à nossa
própria inteligência construir as reais intenções para eles estarem ali. Não é
por conta de um zero, não é por conta de uma pergunta, não é por conta do soro
da verdade. Os homens que não amavam as mulheres. Sempre penso no título desse
filme que eu nunca assisti. Essa peça é uma caça às bruxas, Ítalo é um dos
inquisidores e Ana é a acusada. A primeira coisa que o ignorante ignora é que a
história não precisa ser repetida.
Essa coisa que estamos tentando encenar não fui eu que
pedi. Essa tentativa-e-erro diária me cansa e me alimenta, e meu corpo
consente, contente, a trabalhar tanta tristeza. Ser homem é não ser dócil. Essa peça que estamos montando me lembra de algo que não
sei. Por ventura extrapolasse uma resposta de mim neste instante, arrisco dizer
que seria a lembrança de algo que não somos. É uma peça política, e eu não me
sinto culpado.
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